Uma construção com 60 anos de história

Ianne Ely Godoi Vieira Raquel Leão Luz

Entre, você acaba de chegar em nosso Lugarejo – A Revista do Colégio João XXIII. Aqui você adentrará em uma escola fundada por docentes em plena ditadura, com um legado na construção de uma escola democrática: filantrópica, anticapacitista e antirracista. Somos uma única escola, mas somos uma Escola Comunitária. Aqui a comunidade tem um lugar de corresponsabilidade, de amorosidade e de construção coletiva para a aprendizagem de nossas crianças e jovens. Em frestas e janelas, nos diferentes cantos e recantos desse Lugarejo, o encontro, a troca e a interação impulsionam laços e redes de compartilhamento e colaboração. Somos um lugar horizontal, marcado pelo acolhimento e pelo diálogo. Junto a ele, também estão convergências e divergências, desafios e debates a partir de diferentes pontos de vista. Somos uma comunidade aprendente e, assim, reconhecemo-nos também como ensinante.

Os 60 anos do Colégio João XXIII abriram um tempo e um espaço de (re)conexão deste Lugarejo com comunidades educativas para além dos nossos muros. Ao completar mais um ano de história, marcas desse percurso foram trazidas à memória da comunidade escolar. Uma delas, em especial, articula-se com o retorno do Núcleo de Formação do Colégio João XXIII, conhecido no cenário gaúcho como Setrein (de 1971 a 1999) e o Cetrein (de 2008 a 2019). A Revista Lugarejo é uma das ações de retomada do Núcleo de Formação, criando um periódico que assume a pesquisa cotidiana como um compromisso com a experiência formativa na e para a Educação Básica.

A revista tem como propósito primeiro fomentar e instaurar um espaço permanente de formação e reflexão de comunidades educativas, de forma especial, para docentes e profissionais da Educação. Neste ano comemorativo, sua 1ª edição impressa articula-se com o Seminário Educação em Tempos de Reparação, trazendo para o debate a possibilidade de pensar sobre como é possível (re)construir a Escola, propondo eixos como lentes analí- ticas para este tema: Por uma Educação pela Experiência – A Docência e a Aprendizagem de Crianças e Jovens; Por uma Política Institucional e um Currículo para a Educação Étnico-Racial; Por uma Educação Inclusiva – Pelo Direito à Aprendizagem de Todas as Crianças e Jovens; Por uma Educação pela Diversidade – Gênero e Sexualidade; Por uma Ética nas Relações – Aprender a Conviver em Comunidade.

LUGAREJO – Comunidade Educadora

A Revista Lugarejo teve como inspiração primeira para a escolha do seu nome, tantos outros de origem tupi ou banto. O nome importa, o nome diz de um propósito, de uma marca afetiva, de uma memória, de uma história. O grupo de trabalho da Revista, com representações da comunidade escolar em seu Conselho Editorial e Equipe de Trabalho, trilhou um percurso de reflexões e de idas e vindas até chegar aqui.

Uma das intenções com o nome era dizer de um lugar pequeno, mas grande, potente, desejoso de ocupar um lugar no mundo a partir de seus princípios pedagógicos. No início de tudo, éramos o sonho de quatro educadores — Zilah Totta, Frederico Lamachia Filho, Lilia Rodrigues e Leda de Freitas Falcão; depois fomos o Instituto Educacional João XXIII em uma casa na Avenida João Pessoa; após nos tornamos o Colégio João XXIII, na sede atual de 25.000m². Crescemos, mas sem deixar de ter e ser um jeito de Escola que olha a cada um(a), que sabe o nome, que conhece a história, que acompanha, se faz presente. Assim, ora nos reconhecemos como uma “aldeia”, ora como um lugar pequeno e circular nas redes de troca, ora como um espaço onde tudo é troca.

Dessa inspiração, nos conectamos com o mestre Giba Giba e sua canção Lugarejo. Dentro da perspectiva dele encontramos o nosso Lugarejo, “num canto do mundo […], tudo é troca”.

A proposição de uma revista no espaço da Escola funciona como um convite, uma abertura, o início de uma conversa que, paradoxalmente, se faz meio do caminho, sem final determinado. Há, nesse convite, uma tentativa de abrir brechas na linguagem pedagógica, pausar o tempo apressado que constitui nossas relações, propor um lugar constituído de múltiplas vozes que corroborem a árdua tarefa educativa de fazer a linguagem vivificar, não esmorecer, não adoecer de palavras e gestos mortos, que nada dizem sobre uma educação que se faz a partir da afirmação da vida.

Lugarejo é um convite ao encontro de uma comunidade para ler, escrever, criar, colocar a linguagem no meio, entre uns e outros, na busca por enfeitiçar a realidade, reinventando maneiras de narrar a docência e o compromisso com a educação, que toma parte de nossos gestos mínimos.

Ao ler os textos que abrem esta edição, um movimento dialógico se iniciará. Será como participar de uma conversa que nos convoca a ir junto, estar entre as palavras de alguém que conosco se propôs a conversar. Talvez algumas nos confortem pela poesia que as enlaça, pelo modo delicado como convocam ao pensamento; talvez outras desacomodem, provoquem, nos permitam ampliar perspectivas ou indagar processos que tomam parte de nosso cotidiano. A leitura nos exigirá a habilidade do diálogo e, quem sabe, nos convidará para o exercício da escrita nas próximas edições. Ler pode ser um convite a continuar esta conversa, seja em uma escrita futura, na elaboração de um projeto de estudos, em uma conversa no intervalo ou mesmo no modo como passaremos a olhar o outro que conosco constitui a Escola.Aqueles que aqui escreveram certamente o fizeram do lugar um tanto solitário de quem não pode saber, em totalidade, para quem escreve. A palavra proferida na escrita se lança em direção ao rompimento com certo estado de coisas que organizam nossas práticas educativas.

Dessa forma, escrever tornou-se urgente neste tempo de reparação. É preciso escrever porque algo da docência e do trabalho educativo passa em nós; porque o encontro com as crianças e os jovens nos desafia à reelaboração de nossos modos de vida; porque escrever pode ser parte de vivenciar a docência como experiência, no sentido daquilo que nos transforma, do qual sairemos diferentes. É preciso escrever como experiência radical de permitir que nossas palavras sejam lidas de maneiras insuspeitas pelo outro e, talvez, possam junto conosco modificar a Escola.

Lugarejo é um convite ao exercício da alteridade, pois “seja pela leitura, seja pela escrita, nós participamos de uma comunidade de pensamento que nos permite abandonar um pouco nossa pequena individualidade, tão apertada, sempre em risco de fechar-se sobre si mesma” (LAURO, 2024).

O nosso lugar pequeno, por meio da sua nova Revista, assume-se como tal e se projeta para encontrar tantos outros espaços educativos, criando uma comunidade educadora por meio da palavra, com toda a potência do que ela pode vir a ser.

Referência:

LAURO, Rafael. Ler ou Escrever. Razão Inadequada. 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada. com/2024/03/25/ler-ou-escrever>. Acesso em: [22/09/2024].