Ianne Ely Godoi Vieira
Raquel Leão Luz
Uma revista é sempre um convite. Um convite para quem escreve, ilustra, produz. Um convite para quem se aproxima, experiencia, entrega-se ao desenrolar das páginas. É também um convite a pensar — a abrir espaço para o que ainda não sabemos, para o que nos inquieta e se anuncia nas brechas do cotidiano. Esta edição nasce, assim, do desejo de provocar movimento, de deixar que perguntas se instalem e gerem outras formas de ver, de sentir e de aprender.
Nesta 2ª edição, nosso convite para educadores/as e comunidades da Educação Básica é também uma chamada para a possibilidade de escrever e ler, de experienciar cosmologias, jeitos de ser e de existir na terra em que vivemos. Com a temática Educar para o cuidado — Somos parte da Terra e ela é parte de nós, buscamos a construção de uma narrativa que se propõe a tecer — um compromisso que entrelaça passado, presente e futuro, que celebra a ancestralidade, que responsabiliza comunidades aprendentes a pensar esses temas e a mostrar como se movem diante de um contexto de emergências climáticas. Uma narrativa que não só se constrói como também pergunta: de que modos temos cuidado da Terra, da coletividade e de nós mesmos?
Os fios que conduzem esta edição são eixos em relação, tal qual a vida na Terra. A sabedoria indígena contextualiza, provoca, inquieta e nos convoca ao questionamento de nossas perspectivas e práticas em educação:
“Precisamos pisar suavemente na terra. Precisamos aprender a tratar nossa mãe com o que ela nos dá de amor. A Terra não é mercadoria.” (Ailton Krenak)
Krenak nos convida a pisar suavemente também nas práticas educativas e, nesse sentido, indagar: como reeducar o olhar para destituir a ideia da Terra enquanto recurso e para a compreensão da indissociabilidade entre cada pessoa e a natureza? Que práticas escolares sustentam ainda uma relação de exploração e domínio sobre o mundo? Quais poderiam cultivar o cuidado e a reciprocidade? De que forma o currículo pode ser um campo de desaprendizagem das lógicas de consumo, de outras possibilidades de viver e sentir o tempo e de uma reinvenção do comum?
“O conceito ancestral do bem-viver é profundamente enraizado nas culturas indígenas, onde o bem-estar não é medido pela riqueza material, mas pela qualidade das relações — entre as pessoas, com a natureza e com o espiritual. […] A incorporação dos princípios do bem-viver na vida moderna pode se manifestar de diversas maneiras: desde a promoção de uma economia solidária e cooperativa até a valorização de práticas sustentáveis e a busca por uma vida mais simples e significativa. A educação também desempenha um papel fundamental nesse processo, ao preparar as futuras gerações para viverem em harmonia com o planeta e entre si.” (Kaká Werá)
Kaká Werá nos lembra que educar é um ato de relação e não de posse, algo que também convoca a questionar: como tecer um currículo que se aproxime da conceituação ancestral do bem-viver? O que significa educar para o bem-viver num sistema ainda orientado pela competição e pelo desempenho? Que outros critérios de êxito poderiam guiar as experiências educativas — relações, cuidado, escuta, sensibilidade, partilha? Como construir escolas que não apenas ensinem sustentabilidade, mas experimentem o bem-viver como prática cotidiana? Como, em uma escola comunitária da rede privada, como o Colégio João XXIII, tais princípios podem ser articulados, com uma responsabilização compartilhada, cuidadosa e amorosa?
“A gente vai pra luta, porque a terra chama.” (Sônia Guajajara)
O chamado de Sônia Guajajara pode ressoar, também, no chão da escola, pedindo ação e coragem, afinal: que lutas a escola tem silenciado e quais pode aprender a ecoar? Como transformar o espaço educativo em território de resistência e não apenas de conformação ou de continuidade de um certo mundo? Quais práticas temos feito como parte dessa luta, com ações individuais, coletivas e institucionais?
“Nossa grande mestra é a natureza, e o povo indígena é muito criativo, capaz de olhar para sua existência sem destruí-la, ao contrário do que ocorre com os ocidentais.” (Daniel Munduruku)
O pensamento de Daniel Munduruku abre espaços para imaginar uma escola que não separa saber e vida. Como o ato de criar instiga a construção de um currículo decolonial? Que lugar têm a escuta, o silêncio e o corpo nas práticas pedagógicas desejantes de criar sem destruir? É possível imaginar uma escola que aprenda com a natureza e não apenas sobre ela?
Retomada é um paradigma
(Trudruá Dorrico)
É um modo de vida.
Trata-se de pertencimento.
Subjetividade.
Autoestima.
Trata-se de reaver nossa história,
nossos cabelos, nossas pinturas.
De olhar nosso corpo e sentir a beleza
que vem da terra, da qual tanto nos orgulhamos.
Trata-se sempre de nós.
De como reconstruímos relações fraternas e afetivas.
De como somos mais fortes em rede.
Retomada é um paradigma de poesia.
No gesto de retomada, Trudruá Dorrico nos inspira a revisitar o sentido do pertencimento e da memória. Que retomadas precisamos fazer na escola? De quais histórias, línguas e saberes fomos afastados e como podem ser reaproximados? Seria possível conceber o ato de educar como um gesto de retomada: de si, da comunidade, do tempo e da relação com a natureza? Temos conseguido vivenciar uma escola que reconhece também o quanto somos mais fortes em rede?
Esperamos que, a cada página, leitoras e leitores encontrem ecos de vozes ancestrais, que nos convocam para uma compreensão ampliada e sensível de que “somos parte da Terra e ela é parte de nós”. Como convidados especiais, em nosso segundo volume, temos Kaká Werá e Susana Kaingang, a última sendo também assessora especial desta edição.
As comunidades interna e externa do Colégio João XXIII, que aceitaram nosso convite para essa produção, trazem para essa narrativa experiências, reflexões, recomendações e produções que dialogam com as inquietações e problematizações apresentadas, articuladas com os eixos: CUIDADO, COMUNIDADE, ANCESTRALIDADE e EMERGÊNCIAS CLIMÁTICAS. São relatos de experiência, ensaios teóricos, produções de arte e recomendações literárias e audiovisuais de professoras, professores, estudantes, profissionais da educação que se permitiram olhar o cotidiano de outras maneiras — assumindo o risco de mover-se, de rever caminhos.
Tal qual uma comunidade aprendente, a Revista Lugarejo tem se apresentando como um desafio cotidiano para a experiência de uma Escola que propõe a construção de um projeto em rede. Para a concepção desta edição buscamos uma assessoria educacional vinculada à temática, contando com o apoio de Susana Kaingang em diferentes etapas do processo — do edital à revisão de textos — e como participante fundamental nas decisões importantes sobre a publicação.
Para apreciação e seleção dos textos foi mobilizada uma rede de apoio, incluindo como pareceristas o Grupo de Trabalho da Revista, o Conselho Editorial e a nossa assessora especial. O grupo construiu critérios conjuntamente, discutiu pautas e encaminhamentos, revelando que é possível, por meio da mobilização e do compromisso ético, instaurar redes de fomento, cuidado, produção e publicação de trabalhos que revelam vivências, perspectivas de estudo e pesquisa na/sobre a Educação Básica. A todas/os as/os envolvidas/os fica o nosso agradecimento.
Neste segundo volume, recebemos a submissão de trinta e cinco produções de diferentes tipos de texto, nos diferentes eixos — cabe destacar que em menor quantidade os temas ancestralidade e emergências climáticas, o que nos reforça a importância do tema e a continuidade desse processo formativo —, sendo oito experiências da comunidade externa da Escola.
Devido ao grande número de produções, nesta edição teremos a publicação em duas modalidades, Revista Impressa e Revista Digital, com conteúdo exclusivo e complementar.
O que se oferece, então, são gestos de busca, ensaios de transformação, tentativas de aprender de novo o que pode significar educar. Nosso agradecimento à coragem, à disponibilidade para a luta e à mobilização para a retomada de cada educador/a que inscreve suas palavras no tecido deste Lugarejo.

