É preciso aquilombar-se: a experiência do aquilombando aldeia, memória coletiva e cultura ancestral

Vanessa Gonçalves Dias: é pedagoga formada pela FURG e doutora em Educação pela UFRGS. Membro da linha de pesquisa: Trabalho, Educação e Movimentos Sociais. É coordenadora pedagógica da Escola Comunitária Aldeia Lumiar. http://lattes.cnpq.br/5528158235689425  

Pedro Junior Santos da Silva: é historiador formado pela UFRGS e mestrando em história social na mesma universidade. Membro do grupo Atlânticas: Laboratório de Estudos sobre o Pós-Abolição e coordenador de mestres na Escola Comunitária Aldeia Lumiar. http://lattes.cnpq.br/6859302790769106  

Palavras-Chave: Memória; Aquilombamento; Educação Antirrascista. 

A memória e a história, quando analisadas sob a perspectiva popular, deixam de ser meros conteúdos escolares e passam a constituir instrumentos de luta. Para os povos negros e indígenas, lembrar é resistir: é desafiar a narrativa oficial e eurocêntrica que, por séculos, tentou apagar suas contribuições, culturas e saberes (Santos, 2023). A memória popular preserva vivências coletivas, modos de vida, rituais, tradições e conhecimentos que foram marginalizados pela história produzida pelos colonizadores, contribuindo para a reconstrução do pertencimento e para o fortalecimento da autoestima de comunidades historicamente silenciadas. Dussel (1977) aponta que a “pedagogia imperial” do colonizador naturaliza hierarquias e práticas opressivas, fazendo com que a não-criticidade e a naturalização passem a integrar a vida cotidiana. Nesse horizonte, o projeto Aquilombando Aldeia constitui-se como uma experiência educativa, coletiva e cultural, cujo objetivo é valorizar a ancestralidade, o território e os saberes tradicionais das comunidades negras (quilombolas) e indígenas, articulando práticas pedagógicas que promovem a resistência cultural, formação de consciência crítica e a possibilidade de novas utopias. 

O presente artigo tem como objetivo apresentar a experiência da Escola Comunitária de Educação Básica Aldeia Lumiar na constituição e na organização desse projeto/evento – Aquilombando Aldeia. A Escola Comunitária Aldeia Lumiar está localizada no bairro Tristeza, em Porto Alegre/RS, ao pé do Morro do Osso e próxima à Comunidade Indígena Kaikang. Integra a Aldeia da Fraternidade, uma Organização da Sociedade Civil (OSC), cujo território é composto pelas escolas Aldeia Lumiar e Amigo Spinelli (Educação Infantil), pelo Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e pelo Trabalho Educativo (TE). Suas atividades acompanham os calendários da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED/POA). 

A Aldeia da Fraternidade, nos últimos anos, tem desenvolvido ações integradas por meio de seus programas educativos, especialmente no contexto do Novembro Negro, promovendo programações voltadas à valorização e à reflexão sobre as culturas e histórias afro-brasileiras. Em 2023, com o fortalecimento das práticas antirracistas na Escola Aldeia Lumiar, constituiu-se um Grupo de Mulheres, “surgido da necessidade de criar um espaço de acolhimento para mães, tias e avós, que muitas vezes são as principais responsáveis pelas crianças” (Rodin; Britto; Cunha, 2024). A partir desse grupo e das movimentações político-pedagógicas da escola, foi criado o EEABI (Espaço Educativo Afrobrasileiro e Indígena), integrando, naquele momento, a gestão da escola, as mulheres do grupo e a educadora referência do EEABI. Com a consolidação da organização do EEABI em 2023, a escola, em articulação com os demais programas da Aldeia da Fraternidade, propôs a criação de um evento que não fosse composto por atividades isoladas, mas que se configurasse como um marco na articulação da luta antirracista da instituição. Assim, surge o projeto Aquilombando Aldeia, fundamentado no conceito de aquilombamento, entendido como prática de incentivo à diversidade racial. Partindo da premissa de que as desigualdades raciais são “heranças herdadas” do período colonial, os aquilombamentos constituem-se como respostas pedagógicas necessárias ao enfrentamento do racismo estrutural. O termo “aquilombar” remete à ideia de formar quilombos, ou seja, criar espaços de resistência, inovação e coletividade (Nascimento, 2002). A partir dessa premissa, extrai-se o conceito de aquilombamento como fundamento teórico e prático do projeto.  

Na sua primeira edição no ano de 2023, o projeto Aquilombando Aldeia estruturou-se em um cronograma de atividades articuladas que envolveram toda a instituição e a comunidade organizadas por um grupo de trabalho institucional, reunindo cerca de 100 participantes. O evento iniciou-se com um cortejo de carnaval, organizado por educadores e estudantes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, seguido de uma fala de abertura conduzida pelos educadores e pelo EEABI, na qual foram apresentadas as razões do evento e sua relevância para a instituição, bem como relatos sobre memórias ancestrais de mulheres e famílias do território. Concomitantemente, foram realizadas oficinas temáticas de máscaras africanas, Slam, capoeira e brincadeiras afro-indígenas, uma mostra de personalidades negras e uma atividade de culinária com degustação coletiva. A finalização contou com um cortejo de samba, organizado pelo setor cultural do contraturno, consolidando o evento como uma experiência educativa e cultural integral. Trata-se, portanto, de uma proposta pedagógica e comunitária que une essas duas matrizes históricas (afro-brasileira e indígena) para resgatar a memória dos povos originários e africanos em um processo de educação crítica, fundamentada nos princípios da educação popular (Freire, 1994), da memória coletiva e do reconhecimento das epistemologias afro-brasileira e indígena. 

Na segunda edição, realizada em 2024, o projeto Aquilombando Aldeia consolidou-se como um evento de grande porte, envolvendo novamente todos os programas educativos da instituição, aprofundando debates necessários e ampliando a participação da comunidade. Aproximadamente 300 sujeitos do território e entorno participaram das atividades, reforçando o impacto social e educativo do projeto. A abertura da edição contou com a leitura de um manifesto elaborado pelos organizadores e organizadoras do evento, seguida de uma palestra da professora e pesquisadora, que abordou a importância da valorização da memória afro-indígena e da construção de práticas educativas antirracistas. A programação da terceira edição compreendeu atividades culturais e pedagógicas diversificadas, tais como rodas de capoeira e samba, desfile com peças customizadas, apresentação do podcast “Será que Pode F3B?”, oficinas de contação de histórias infantojuvenis, oficinas de funk e dança, além de uma degustação coletiva de feijoada e acarajé. Esta edição reforçou a dimensão integradora do projeto, articulando memória, ancestralidade, cultura e território. O acompanhamento do projeto ao longo das edições evidencia o papel da Aldeia da Fraternidade como espaço de protagonismo comunitário e de práticas pedagógicas em que memória e história são mobilizadas como ferramentas de existir na diversidade. A proposta para 2025 está alicerçada no eixo da valorização da cultura afro-gaúcha, inspirando-se em figuras como Oliveira Silveira, que constitui uma dimensão essencial para compreender a história, a diversidade e as identidades regionais do Rio Grande do Sul (RS). Tal reflexão é especialmente relevante em um contexto marcado por uma narrativa de “tradição inventada” (Hall, 2006) e historicamente eurocêntrica, que frequentemente invisibilizou a presença e as contribuições de povos negros e indígenas. Nesse sentido, a valorização da cultura afro-indígena no RS envolve o resgate da memória histórica e a resistência cultural, manifestando-se em práticas como música, dança, culinária, oralidade, festividades e saberes tradicionais, os quais fortalecem a identidade cultural regional. 

Por fim, observa-se que o ato de aquilombar-se transcende o tempo, configurando-se não apenas como memória, mas também como metodologia educativa de mobilização comunitária, capaz de se adaptar às diferentes contingências vivenciadas pela população negra ao longo da história. O projeto Aquilombando Aldeia evidencia que a educação, quando orientada por princípios de justiça racial e pluralidade cultural, contribui para a formação de sujeitos conscientes, capazes de reconhecer e valorizar vozes historicamente silenciadas, fortalecendo a construção de uma educação democrática, inclusiva e comprometida com a equidade racial. 

Referências Bibliográficas 

BRITO, Mariana; REDIN, Mayra; CUNHA, Viviane. Grupo de Mulheres da Escola Comunitária Aldeia Lumiar. in: IV Simpósio de Psicanálise e Educação de Minas Gerais: Decolonialidade e diferenças na cultura. 2024. 

DUSSEL, Enrrique. D. Por uma ética da libertação latino-americana. São Paulo: Loyola; UNIMEP, 1977. 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. 

HALL. Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. 

NASCIMENTO, Maria Beatriz. Uma história feita por mãos negras. In: RATTS, Alex (org.). Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza, 2007. 

NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. 2. ed. Brasília: Editora Fundação Cultural Palmares, 2002. 

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo, UbuEditora/PISERAMA, 2023.