A literatura de cordel como espaço de construção da memória e da ancestralidade: um ensaio sobre as produções dos estudantes da 1ª série do Colégio João XXIII 

¹Raíssa Antunes 

²Lucas Neves 

Considerações iniciais e perspectiva teórica 

Como propor uma educação que nos permita atualizar aquilo que discutimos e ensinamos tradicionalmente em sala de aula? Como tensionar novos caminhos de reflexões e fruição, conectando-os com imagens e concepções de presente-passado-futuro que se fundem e fluem para a construção de um saber contracolonial? A educação, como aprendemos com Paulo Freire, deve ser libertária. E mais do que isso: hoje, conforme outros olhares, ela precisa ser capaz de se despir de sua biblioteca colonial, enfrentando as dúvidas e as dificuldades acionadas frente a essa alteração em nossa forma de educar. Somente assim uma nova lógica de vida e de passado-presente-futuro pode ser construída. Porém, como construímos isso enquanto escola, enquanto educadoras/es que são permeadas/os de saberes e referências que nos guiam para outro caminho? Eis o nosso grande desafio. 

Este texto parte de uma necessidade de ir além, de transformar a educação em “paraquedas coloridos” (Krenak, 2019), em que sejamos capazes de olhar criticamente para o que nos cerca, entender as problemáticas que fluem em nosso contexto contemporâneo, repensar nossa forma de viver e, consequentemente, nossa forma de educar, para transformar a educação em um paraquedas de esperança contra o fim do mundo. Estamos diante de se refazer e de pensar o ato de educar, o qual precisa ser construído, teorizado, estudado e analisado com a devida atenção, pois a educação contracolonial também é uma nova forma de experienciar nossa vivência com a terra em que habitamos, com os saberes que nos circundam e com toda a sociedade. Logo, ao pensarmos este ensaio, bem como o trabalho executado pelos estudantes das 1ª séries do Ensino Médio do Colégio XXIII, propusemo-nos a nos deslindar desse olhar colonial, realocando o conhecimento para o território que habitamos: o sul global.  

Por esse motivo, a experiência pedagógica aqui relatada, intitulada No Varal da Memória, foi concebida como uma forma de promover o protagonismo estudantil e a valorização da história e da cultura popular brasileiras, tendo como eixo central a literatura de cordel. Assim, partimos dessa vertente poética (por muitos anos, restrita ao povo nordestino) para aproximar a oralidade e a poesia do Trovadorismo, comumente ensinadas nas aulas de Literatura. Nosso objetivo era fazer um movimento contracolonial, apresentando o cordel como uma literatura que, assim como a dos trovadores portugueses, parte da oralidade para a preservação da história e dos costumes de um grupo social.  

“educar e informar, por meio dele alguns ouvintes aprendiam a ler ou, quando não, memorizavam e passavam a história adiante”
(Silva, 2023, p. 11)

Nesse contexto, valemo-nos do trabalho de Silva (2023), que, em seu estudo sobre o cordel, analisa, inclusive, a ligação entre o cordel nordestino e a literatura produzida em Portugal. Segundo a autora, diferentemente do que foi produzido enquanto literatura portuguesa, o cordel do nordeste operou como meio de comunicação para a população dessa região brasileira, com a funcionalidade de “educar e informar, por meio dele alguns ouvintes aprendiam a ler ou, quando não, memorizavam e passavam a história adiante” (Silva, 2023, p. 11). Esses cordelistas nordestinos, desde sempre, viajam pelo interior, apresentando suas histórias em casas-grandes, festividades ou residências. Essas tramas, além da realidade vivenciada no interior, narram também histórias ficcionais. Direcionada a públicos diferentes, enquanto a poesia trovadoresca era produzida pela elite e destinada apenas àquelas/es que detinham certo status social, a literatura de cordel, por sua vez, sempre se destinou ao que Silva (2023) chama de “setores populares” da sociedade. Esse desenho proposto pela pesquisadora constrói uma ligação entre essa literatura oral portuguesa e a tradição do cordel nordestino, mas não responde o porquê de hoje estudarmos com maior profundidade apenas a poesia portuguesa, e não esse importante patrimônio cultural do nosso país.  

Partindo dessas e de outras provocações, o projeto buscou articular literatura, língua portuguesa, artes visuais e história, oferecendo aos alunos não apenas a oportunidade de conhecer um gênero literário de relevância cultural, mas também de produzir suas próprias obras, homenageando personalidades historicamente silenciadas. Apesar de suas alterações ocasionadas pelas grandes editoras e pelas redes sociais, enxergamos no cordel a possibilidade de pensar a poesia oralizada e a forma como trabalhamos com ela, relacionando-a com o Trovadorismo, assunto frequente em nossos currículos.  

Sob essa perspectiva, inspirado na obra Heroínas Negras Brasileiras: em 15 cordéis, de Jarid Arraes (2020), o projeto propôs a reflexão sobre as noções de raízes, legado e herança, vinculadas à ancestralidade e à resistência. Nesse sentido, o propósito da atividade era que os estudantes, ao entrarem em contato com essas histórias, inspirassem-se para criar cordéis autorais que trouxessem à tona vozes marginalizadas ou historicamente apagadas. Dessa forma, ao produzir o texto escrito, a proposta foi ao encontro da percepção de Britto (1997) acerca da função da escola em relação ao estudo da língua portuguesa e da sua literatura. Segundo o autor, “o papel da escola deve ser o de garantir ao aluno o acesso à escrita e aos discursos que se organizam a partir dela” (Britto, 1997, p. 176). Nessa ótica, uma vez que o trabalho com diferentes gêneros textuais é fundamental para os plenos aproveitamento e desenvolvimento do falante diante do estudo da sua língua materna, a abordagem do gênero cordel permitiu um importante contato com uma categoria de texto pertinente e historicamente relevante para se pensar não só o idioma, mas — principalmente — a história e a cultura do Brasil.  

Assim, aproximar os estudantes da cultura popular e permitir que se tornassem autores de suas próprias narrativas foi, portanto, um ato de valorização da experiência coletiva e de afirmação da identidade. Os cordéis criados pelos alunos foram justamente lugares de encontro de vozes — históricas, literárias e sociais — que se entrecruzaram e se ressignificaram. A seguir, a proposta será detalhada em suas etapas e ilustrada em detalhes. 

O cordel em sala de aula: um olhar para a prática docente 

O projeto desenvolveu-se em diferentes etapas. Inicialmente, as/os estudantes tiveram contato com os cordéis de Jarid Arraes, que serviram como inspiração temática e estilística para suas próprias produções literárias. A obra Heroínas Negras Brasileiras: em 15 cordéis (Arraes, 2020) foi escolhida por narrar a história de 15 mulheres negras que deixaram seus devidos legados para a sociedade, corroborando a proposta de uma narrativa contracolonial. Além disso, esse livro trabalha com a poesia de cordel, colocando-a em paralelo com a poesia trovadoresca, conteúdo que estava sendo estudado em paralelo.  

Após a leitura inicial dos cordéis de Jarid, as/os estudantes realizaram pesquisas sobre figuras históricas e simbólicas ligadas às lutas por direitos, à ancestralidade e à resistência. Vale ressaltar que a escolha dessas personagens foi realizada pelas/os estudantes, em grupo, de acordo com as preferências e os interesses coletivos e individuais de cada um. Nessa lógica, havia uma orientação clara: era imprescindível que a escolha fosse justificada com base na proposta de raízes e legados, com personagens que, para além da preferência pessoal, fossem relevantes para a história e/ou a cultura do Brasil. Apesar disso, é fundamental destacar que a escolha das/os alunas/os imperou, o que explica a diversidade das personalidades escolhidas. As/Os brasileiras/os selecionadas/os são apresentadas/os na lista a seguir, organizada cronologicamente, de acordo com o ano de nascimento de cada figura: Ganga Zumba, Maria Quitéria, João Cândido, Maria Bonita, Mané Garrincha, Lélia Gonzalez, Eunice Paiva, Maria da Penha, Bianca Magro, Marielle Franco e Éverton Galdino. 

Realizada a pesquisa e justificada a escolha da figura a ser homenageada, as/os estudantes produziram textos autorais no formato de cordel, nos quais homenagearam personalidades que, por suas trajetórias, resistiram ao esquecimento. Paralelamente à produção textual, as/os alunas/os desenvolveram a dimensão visual do projeto. Utilizando a técnica da isogravura, foram criadas matrizes em isopor, simplificando e ressignificando a tradição da xilogravura, estética típica dos folhetos de cordel. Essa integração de linguagens fortaleceu o caráter interdisciplinar da proposta, envolvendo áreas como Literatura, Língua Portuguesa, Arte e História. A imagem a seguir mostra o resultado desse processo, com as gravuras produzidas pelas/os estudantes.  

Imagem 1: isogravuras produzidas pelos estudantes das turmas 1A e 1C, 1ª série do Colégio João XXIII, para o projeto “No Varal da Memória”. 

Toda essa construção desaguou em uma instalação literária e artística, na qual cordéis e imagens se estenderam em varais, transformando-se em celebração viva da memória. Ademais, a musicalização de alguns textos e a performance oral ampliaram ainda mais o alcance expressivo do projeto, dando voz e ritmo às palavras. Para a impressão dos cordéis, escolhemos uma fonte que evoca a estética das letras tradicionais, preservando a identidade visual do gênero, mesmo sem o formato de livreto, como pode ser percebido no exemplo abaixo. 

Imagem 2: exemplo de cordel produzido pelos estudantes. Homenageado: Mané Garrincha. Autores: Antonio Meneghello, Bruno Jobim, Guilherme Chiesa, João Pedro Bittencourt, Leonardo da Silva, Lorenzo Alves e Pedro Amaral. 

O projeto, no entanto, não se encerra aí: ele ganhará nova dimensão com o livro que reunirá os cordéis e as gravuras produzidas por cada grupo, a ser lançado na Feira do Livro de Porto Alegre em 2025. Esse produto final consolida a proposta ao conduzir os estudantes, de leitores de cordel, à outra margem da literatura — a de autores, que agora terão seus textos lidos e poderão inspirar outras narrativas. 

Considerações finais 

Como diz Nego Bispo, “Quando você compartilha o saber, o saber só cresce”. É com essa reflexão que fechamos nosso ensaio, unindo teoria e prática para tentarmos, de alguma forma, fazer o saber crescer, construir um paraquedas que nos faça pousar na Terra, com diferentes perspectivas de ser e existir. Essa prática educacional revelou, para nós, enquanto educadores, alto engajamento das/os estudantes, que se tornaram protagonistas de um processo de criação coletiva e significativa. Ao homenagearem figuras marginalizadas, as/os alunas/os não apenas ampliaram seus repertórios culturais e históricos, mas também vivenciaram o poder da arte como ferramenta de resistência e transformação social.  Partindo da literatura de cordel, tiveram a oportunidade de aproximar-se da oralidade, compreender esse aspecto que, por diversas vezes, é desvalorizado enquanto saber, e perceber a relevância histórica da literatura de cordel como forma de ensino e aprendizagem sobre nossos legado e cultura. 

Por fim, do ponto de vista pedagógico, a experiência ainda revelou como o trabalho com gêneros textuais enraizados na cultura popular pode despertar múltiplas habilidades: leitura crítica, produção criativa, expressão artística e consciência histórica. Ao criar cordéis que entrelaçam passado e presente, os alunos não apenas se apropriaram da língua e dos discursos que nela se inscrevem, mas também deram origem a novas vozes — reafirmando-se como sujeitos históricos que, ao escrever, também escrevem a si mesmos no tempo. 

Referências 

ARRAES, Jarid. Heroínas negras negras brasileiras: em 15 cordéis. São Paulo: Editora Seguinte,2020. 

BRITTO, Luiz Percival Leme. A sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical. Campinas: Mercado de Letras, 1997. 

FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade.Rio de janeiro: Editora Paz e Terra Ltda, 1967. 

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023. 

SILVA, Amanda Muniz. A Trajetória da literatura de cordel no Brasil: das feiras às mídias digitais. Verbum, v. 12, n.2, p.6-31, set. 2023.