Por que o sistema educacional tem que aprender sobre branquitude? 

André Luís Fernandes da Rocha: Professor de Artes e de Geografia, formado em Licenciatura em Artes Visuais e Licenciatura em Geografia, ambas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, especialista em Poéticas Visuais pela Universidade Feevale e membro da Comissão Antirracista do Colégio João XXIII. 

Jeferson Santos da Silva: Graduando em Licenciatura em Matemática pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e membro da Comissão Antirracista do Colégio João XXIII. 

Luciana Conceição Lemos da Silveira: Socióloga, formada pela Universidade do Vale dos Sinos – Unisinos, especialista em Sociologia das Religiões, Ms. Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre e membro da Comissão Antirracista do Colégio João XXIII.

Palavras-chave: ERER; Branquitude; Currículo. 

A intensidade da vida docente, em meio à preparação de aulas, correções, avaliações e ao próprio magistério em si, o “dar aulas”, também reserva espaço a lampejos de instrumentalização no cotidiano. Não algo formal, como quando estamos matriculados em cursos, graduações, especializações ou pós. Mas, sim, ao assistir a um vídeo por acaso. Em uma dessas oportunidades, em que Cida Bento1 entrevista Lia Vainer Schucman2, vê-se muito mais num bate-papo no qual a própria Cida aborda branquitude e sua relação com a educação antirracista no diálogo entre uma mulher negra e uma mulher branca que escrevem sobre o tema. Na esteira das comemorações dos 20 anos da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira em todas as escolas de ensino fundamental e médio, públicas e privadas, no Brasil, a autora de Pacto da Branquitude3 provoca o debate: “Por que o sistema educacional tem que aprender sobre branquitude?”. 

A branquitude não se refere apenas à cor da pele, mas sim ao privilégio estrutural e à posição social de superioridade assumida pelo grupo de pessoas, resultado de uma construção sócio-histórica e racial. Esse conceito abrange os privilégios sociais, políticos, econômicos e simbólicos que beneficiam os brancos, perpetuam o racismo e mantêm a cultura ocidental europeia como um padrão universal, ao mesmo tempo que inferioriza e exclui grupos que não se caracterizam como tal. A branquitude é uma particularidade, que se pensa e se trata a si mesmo como universal. Nas formações dos currículos desde a Lei nº 10.639/2003, o pensamento hierárquico manteve sua estrutura, pensando na “contribuição” de negros e indígenas. O processo, entretanto, continua sendo de um pensamento a partir do que se pensa “civilização branca”. 

Os conhecimentos e as culturas indígenas e africanas são apêndices, inclusive para quem está embasando o currículo e as práticas docentes na Lei nº 10.639/2003. A epistemologia e o conhecimento pertencem à branquitude, “As belas artes”, a “Arte Clássica”. Grande parte dessa noção é causada pela repetição da ideia de que “o universal é branco”. É assim na Geografia, na História, na Literatura, na Filosofia, Português, Matemática, Química, Física, onde existe a reprodução da hierarquia racial do branco como centro. 

Cida Bento (2022), na obra O Pacto da Branquitude¹, desenvolve a teoria de que existe um acordo silencioso e não verbalizado para manter os privilégios e a posição de domínio na sociedade, resultantes de um passado escravocrata e colonial. Quando olhamos para esse debate de modo mais amplo, percebemos que a questão da branquitude não está só na escolha de quais artistas ou filósofos são lembrados. Ela atravessa todo o sistema educacional, inclusive áreas que muitas vezes são tratadas como neutras, como a Matemática. 

Um estudo recente de Alves-Brito, Silva e Giraldo (2023) mostrou que, em quase dez anos de produção de um programa nacional de formação de professores de Matemática, menos de 1% dos trabalhos consideraram de forma direta as relações étnico-raciais. Isso significa que, mesmo depois de duas décadas da lei que obriga o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena, ainda se produz conhecimento como se o mundo fosse exclusivamente branco. Esse dado revela algo profundo: não basta ter leis ou diretrizes se a lógica que organiza o currículo continua a ser eurocêntrica.

Assim como nas artes, em que se repete a ideia de que a verdadeira arte é a europeia, também nas ciências exatas se reforça a noção de que o conhecimento válido é o ocidental, apagando as contribuições africanas, indígenas e de outros povos. É por isso que a pergunta “Por que o sistema educacional tem que aprender sobre branquitude?” ganha tanta força. Porque a escola, a universidade e os programas de formação docente ainda reproduzem diariamente a ideia de que o universal é branco, mesmo quando tentam incluir outros saberes como “temas complementares”. Aprender sobre branquitude é desmontar essa centralidade, é perceber que o currículo pode e deve ser reconstruído de forma plural, reconhecendo a potência dos saberes que sempre foram colocados à margem. Somente assim será possível pensar em uma educação antirracista de fato: aquela que não trata a diversidade como apêndice, mas como fundamento. Uma educação em que a arte europeia não seja “a arte”, e em que a Matemática, a Literatura, a Filosofia e todas as áreas do conhecimento sejam atravessadas por diferentes vozes e histórias. Uma educação que não apenas ensine a conviver com a diferença, mas que se reconstrua a partir dela. 

Para estudantes de diferentes origens raciais e étnicas, a falta de representação e a predominância da branquitude no ambiente educacional podem afetar seu senso de pertencimento e identidade. Isso pode impactar sua autoestima e motivação acadêmica. Há um movimento crescente para descolonizar o currículo e incluir perspectivas mais diversas. Isso envolve reconhecer e valorizar as contribuições de diferentes culturas e comunidades, além de abordar questões de racismo e desigualdade. Desconstruir a branquitude no espaço educacional envolve questionar e transformar as estruturas, práticas e discursos que perpetuam no que se refere a grupos que historicamente foram excluídos e invisibilizados. 

Nesta esteira, o trabalho que vem sendo desenvolvido no Colégio João XXIII propõe tal desconstrução. Existe investimento na formação permanente do quadro funcional administrativo e docente. Literaturas de ponta nesta esfera foram entregues ao quadro e, junto a isso, debates e seminários de formação. Foi criada a Comissão Antirracista, atuante junto ao Conselho Deliberante, à Administração e Diretoria Pedagógica. No que diz respeito aos povos originários, estão presentes na comunidade escolar indígenas da etnia Kaigang, participando de forma comunitária na comercialização e divulgação de ações e produtos. 

As parcerias que são estabelecidas com a comunidade para promover a inclusão e a diversidade, envolvendo pais, líderes comunitários e organizações locais no processo educacional, estão entre as muitas medidas adotadas para implementação com êxito de uma educação antirracista. Esse olhar, cabe lembrar, é de permanente revisão e autocrítica construtiva, como busca contínua de evoluir nas práticas educativas, administrativas e formativas, para que alcancem os diferentes públicos com os quais a escola se relaciona. 

Referencias Bibliográficas 

ALVES-BRITO, A.; SILVA, J. S. da; GIRALDO, V. A. [Título do artigo]. Identidade, v. 28, n. 1, p. 107-127, jan/jun. 2023. 

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.  

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003, seção 1, p. 1.