O brincar como ponte: uma vivência na Aldeia Multiétnica 

Palavras-chave: Palhaçaria; Povos indígenas; Infância; Teatro; Ancestralidade; Comunidade. 

Relato de experiência 

Estive ausente… ou talvez mais presente do que nunca. 

Em julho de 2025 participei da Aldeia Multiétnica, em Alto Paraíso de Goiás, na Chapada dos Veadeiros, numa imersão de aprendizado, escuta e partilha. A convite da colega de ofício Lia Motta, integrei uma residência artística cujo desafio era montar, em apenas uma semana, uma peça teatral com crianças indígenas e não indígenas, de idades entre 2 e 12 anos, vindas de diferentes territórios, culturas e línguas. 

Nosso ponto de partida foram as brincadeiras tradicionais aprendidas diretamente com os anciãos dos povos Mẽbengôkre-Kayapó, Guarani Kaiowá, Krahô, Xingu, Xavante, Kariri-Xocó e Funiô. A cada manhã, reuníamos as crianças para experimentar jogos, cantos e histórias ancestrais. 

O processo foi menos sobre conduzir e mais sobre escutar: às vezes o que importava era acolher as ausências, os silêncios e as chegadas repentinas. Aos poucos, foi se desenhando a narrativa do espetáculo: inspirada no mito Tikuna do Povo-Peixe, a encenação ganhou corpo com a construção coletiva de duas grandes cobras de tecido, que serpenteavam pelo espaço como símbolos da vida e da transformação. 

Na mística teatral que criamos juntos, as crianças brincavam de proteger a Terra das mãos gananciosas que tentavam roubá-la, devolvendo-a ao ancião Hotxuá — o palhaço sagrado do povo Krahô, que nos acompanhava. Como palhaço, para mim foi uma honra inenarrável poder aprender e brincar ao lado desse mestre. 

No dia da apresentação, diante da comunidade da Aldeia, as crianças entregaram uma cena vibrante, cheia de movimento e poesia. Mais do que um espetáculo, foi uma convocação coletiva ao cuidado com a Terra, feita por pequenos corpos brincantes que nos lembravam, com simplicidade e verdade, da nossa responsabilidade com o mundo. 

Ao longo dessa jornada, confirmei algo que já intuía: o brincar é universal. Ele cria pontes, dissolve muros e aproxima mundos diferentes. Naquele encontro, teatro e palhaçaria foram caminhos espirituais, sementes de comunidade e de continuidade dos saberes. 

Voltei a Porto Alegre com a caneca do meu chá transbordando de aprendizados, encontros e afetos. Levo comigo a certeza de que processos como este não se encerram em um resultado final: são obras vivas, que continuam ecoando em quem as viveu. 

Andre Tuiga: é artista de rua, palhaço brincante e multi-instrumentista. Pesquisa palhaçaria, mágica, manipulação de objetos e música desde 2012, com atuação em companhias como Cia Um e Meio, Cia Sem Lona e Trupi Di Trapu Teatro de Bonecos. É criador do espetáculo solo Tuiga Sólito e do projeto Circo Fusca, circo itinerante que percorre comunidades periféricas levando riso, poesia e irreverência. 

Site: tuiga.com.br