Luciene Tognetta¹
Uma das mais belas definições de ética é de um autor que o mundo perdeu há vinte e poucos anos2, um filósofo contemporâneo chamado Paul Ricoeur3. Escreveu ele que “ética é a busca por uma vida boa com e para o outro em instituições justas”.
Há muita sabedoria em tão breve sentença. Embora considerada moderna, a construção desse conceito tem origem nos gregos, e sabia muito bem Ricoeur o que significava a escolha de cada palavra. Pois bem, comecemos pelo que representa o vocábulo busca. Ora, podemos pensar: não estamos nós, seres finitos, infinitamente a procura do futuro para as nossas vidas? A busca é exatamente porque o verbo para o qual se orienta a ética não é o dever, mas o querer – o que se quer, para o que se move… E a resposta de Ricoeur é a mesma do pai de Nicômaco4 na Grécia antiga: é pela vida boa.
Na verdade, o filósofo grego teria dito que a busca permanente do homem era pela eudemonia ou o que se pode traduzir como felicidade. O que mais o homem quer? Ou qual o princípio da existência humana? Para ambas as perguntas, a resposta seria: resolver seus conflitos e ser feliz. A vida boa, nesse sentido, é a busca pela felicidade, como sinônimo de dignidade, por atingir a plenitude de seus objetivos como humano.
Mas aí está a natureza da ética como perspectiva que engloba outro conceito bastante conhecido no ocidente: a moral5. A moral teria sido amplamente difundida como a ideia do dever, como a vida que se deve ter em função da coexistência. Se existe o outro, existe o direito, se existe o direito de um, há o dever do outro, e nessa lógica, o um pode ser o outro. Eis como ética engloba a moral e não só a pressupõe, mas propõe um avanço do ponto de vista dos estudos da Psicologia que aqui tão resumidamente se descreve: a busca pela vida boa não só para o outro – o que seria a ideia da moral baseada no dever – mas com o outro – o que produz o sentido de implicação de si mesmo ou o empoderamento do eu.

Na ética de Ricoeur, não só o outro é visto como o sujeito de direito a quem o dever é compromisso, mas o eu é tão importante no sentido de ser quem escolhe ser justo, generoso, bom, amigo, generoso, porque quer ser visto assim. Em uma palavra: a máxima de Ricoeur é o bem a si e ao outro. Isso significa um grande passo para entendermos que para ser bom, justo, solidário, de uma vez por todas, não bastará a consciência do dever, muito menos a obediência ao dever, mas será preciso que nossas crianças e adolescentes se sintam bem fazendo o bem, escolhendo fazer o bem. Assim, necessariamente, para escolher o bem, precisarão ter seus sentimentos reconhecidos, ter espaços para falar sobre o que sentem, sobre suas dores, sobre suas preocupações…
Finalmente, a definição de Ricoeur traz uma exigência contextual que parece imprescindível para nós que somos educadores. Tornar-se ético implica uma formação institucional, pois o autor completaria: em instituições justas.
Diríamos nós que, em momentos tão cruciais como os que vivenciamos em nossa sociedade hoje, em que marcos civilizatórios têm sido quebrados constantemente – como a desqualificação racial de povos de origem africana, como o feminicídio que acontece em nosso país ou os peculiares discursos discriminatórios que mostram uma masculinidade tóxica presente em nosso cotidiano, como a ascensão de grupos extremistas – o que mais nos faltam são instituições justas.
E o que tudo isso tem a ver com a escola?
Diríamos que, do ponto de vista social, a escola é uma microssociedade em termos de funcionamento, mas não em sua função. A escola é, por excelência, um local de aprendizagem das experiências humanas. Sua função é a formação para a sociedade.
A escola é uma instituição dentro da sociedade. Diríamos que, do ponto de vista social, a escola é uma microssociedade em termos de funcionamento, mas não em sua função. A escola é, por excelência, um local de aprendizagem das experiências humanas. Sua função é a formação para a sociedade. Nesta última, as regras, por exemplo, estão postas. Na instituição escolar, os e as estudantes precisarão construir as regras, legislar sobre elas para poder reconhecer o seu valor6. Eis a diferença do que se entende por sua função, que é a formação.
Isso não significa que a escola que forma não é uma escola que sanciona o comportamento de quem age mal. Mas é exatamente por compreender como é que se dá a formação humana que quem se ocupa da educação entenderá que quem age mal precisará, sim, reparar o que fez de errado e tomar consciência do seu erro. Essa não é uma tarefa fácil, sabemos, porque exigirá tempo e sabedoria. Não para esperar que quem agiu mal se transforme pela obediência, mas pelas boas perguntas que acolham e ao mesmo tempo permitam antecipar as consequências dos próprios atos, comparar possibilidades de solução, descentrar-se do seu ponto de vista, ter seus sentimentos reconhecidos, reparar seus erros e buscar formas de aprender a conviver com os que são diferentes.
Ao refletir sobre a convivência escolar, imediatamente nos vem à mente o cheiro e o ruído de crianças correndo, comendo, subindo e descendo escadas, adolescendo. Nada nos causa mais estranheza do que imaginar uma escola sem as suas maiores dificuldades: os problemas de convivência.
Tudo isso para dizer que eis a grande oportunidade para se ensinar ética na escola. Se estivermos certos para justificar nossas hipóteses, a convivência na escola será a grande chance que temos para formar nossos meninos e meninas para a coexistência em sociedade7.
O fato é que há mais problemas a se destacar: quem de nós que somos profissionais em educação teve contato, por acaso, com essa temática em seus cursos universitários? Certamente, o tema da convivência ainda é uma lacuna nos currículos de graduação para a formação de docentes. Como lidar com comportamentos inadequados de nossas estudantes e estudantes e como estruturar as normas em nossas instituições de ensino são exemplos das deficiências na formação dos professores em nosso país. Contudo, é ingênuo supor que apenas a formação superior seja adequada para a construção de conhecimentos que habilitem professoras e professores a entender e intervir em questões de extrema complexidade. Para que a escola realize seu papel de cuidado, proteção e bem-estar, e para que seja possível aprender a lidar com conflitos de forma harmoniosa e respeitosa, é imprescindível uma formação contínua, já que o objeto com o qual lidamos é profundo e exige de nós um conhecimento de como o fazer.
Isso justifica parcialmente a importância de um currículo para a convivência8 que desejamos que seja ética: existem diversos tópicos que se entrelaçam em um tema amplo como este, que precisa de estruturação, sequência, continuidade e sistematização, pois é um objeto de conhecimento. Desde os tempos da velha disciplina de Educação Moral e Cívica, tiramos do currículo uma disciplina cujo objeto tinha premissas paralelas a esta e, por seus princípios serem duvidosos ideologicamente falando, deixamos uma lacuna nos currículos de nossos estudantes que, passados anos, não conseguimos ainda, corrigir. Se fazemos isso com a Matemática, pois nela encontramos elementos cruciais e fundamentais para o avanço dessa área do saber pelos e pelas estudantes, também podemos fazer com o tema da convivência.
Lamentavelmente, seja na esfera curricular, seja no âmbito relacional, notamos um certo amadorismo ainda presente na maneira como muitos professores gerenciam os conflitos entre os estudantes e na maneira como educam moralmente. Superar essa contradição entre o que queremos e o que fazemos é uma grande necessidade entre nós.
Resta-nos a esperança de que nossas escolas sejam espaços de vida boa para mais brasileirinhos e brasileirinhas. Vida boa como sinônimo de bem-estar e convivência positiva. E finalmente, ao substantivo convivência, meninos e meninas possam usufruir do adjetivo ao qual não podemos renunciar: ética. Esta deve ser a nossa batalha.
Referências:
1 Professora livre-docente do Departamento de Psicologia da Educação da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp.
2 Ricoeur morreu em 20 de maio de 2005.
3 RICOEUR, P. Soi-même comme un autre. Paris: Éditions du Seuil, 1990.
4 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987. Coleção: Os pensadores.
5 O leitor pode encontrar uma discussão mais aprofundada sobre moral e ética em TOGNETTA, L. R. P. A formação da
personalidade ética: estratégias de trabalho com afetividade na escola. Campinas: Mercado de letras, 2009.
6 Ver TOGNETTA, L. R. P.; VINHA, T. P. (org.). É possível superar a violência na escola? Construindo caminhos pela formação moral. São Paulo: Editora do Brasil, 2013.
7 Para se aprofundar sobre o tema da convivência, ler JARES, Xesus R.edagogia da convivência. São Paulo: Palas Athena, 2008.
8 TOGNETTA, L. R. P.; LEPRE, R. M. (org.). Um currículo para a promoção da convivência ética e prevenção da violência: Por quê? Americana: Adonis, 2022.
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